O Santo Padre nomeou Dom Evaristo Pascoal Spengler, OFM, bispo da Diocese de Roraima (Brasil)
Depois da viagem a Roma para assistir à cerimónia de canonização de José Allamano, pai e fundador dos missionários da Consolata, Monsenhor Pascoal conhece em primeira mão a realidade pastoral da Arquidiocese de Sevilha desde a sua chegada à cidade na segunda-feira, 21 de outubro, onde permanecerá até quinta-feira, dia 24, quando retornará ao Brasil. Durante estes quatro dias cumprimentará o Arcebispo de Sevilha, Dom José Ángel Saiz Meneses e terá vários encontros, entre eles, com a Delegação Diocesana de Misiones, com os sacerdotes do clero diocesano, com as consagradas de Villa Teresita, com os Oblatos freiras e as filhas da caridade. Também compartilhará com os dominicanos de Santa María La Real, de Bormujos.
O bispo de Roraima terá alguns momentos de diálogo com os bispos auxiliares de Sevilha, monsenhor Teodoro León e monsenhor Ramón Valdivia . Visitará a Casa Nazaret da Cáritas Diocesana e outras realidades da Arquidiocese, entre elas o Seminário Metropolitano de Sevilha. Na quarta-feira, dia 23, às sete e meia da tarde, presidirá uma Eucaristia na Paróquia San José e Santa María, na zona leste de Sevilha.
A seguir, reproduzimos uma entrevista que o Bispo de Roraima concedeu à mídia diocesana sobre a situação da mobilidade humana em sua diocese e a resposta da Igreja do Brasil aos diversos desafios pastorais.
Como você descreveria a Diocese de Roraima?
Roraima é uma diocese muito complexa. Porque tem duas fronteiras e uma realidade muito diversificada. Há um fluxo migratório muito grande com mais de um milhão de pessoas que já passaram pelo estado desde 2017. A Igreja desempenhando um papel fundamental no acolhimento. E também uma realidade com doze povos indígenas. Com diferentes culturas e processos de vida. A Igreja abordou muitos desses grupos étnicos de maneira particular com os Macuxi, Wapichama e Yanomami. Com quatro missões da Consolata na Serra Raposa de Sol, mais a da Serra da Lua, a do baixo Rio Branco e a de Pacaraima. Além de outras regiões. Mostrando um território que não é uniforme, mas onde os povos indígenas vivem em ilhas separadas umas das outras, com proprietários de terras no meio. O que dificulta muito a relação desses proprietários com os povos indígenas.
Mas a Igreja de Roraima tem uma história muito bonita, uma história profética, uma história de comunhão com os mais pobres. E aí tentamos agora colocar em primeiro lugar a nossa opção evangelizadora.
Os primeiros aos quais devemos prestar muita atenção são os povos indígenas e os migrantes.
Monsenhor, conte-nos sobre a situação do tráfico de pessoas em Roraima e a realidade do povo Yanomami
Roraima é um estado localizado no extremo norte do Brasil, fazendo fronteira com a Venezuela ao norte e com a antiga Guiana Inglesa, hoje Guiana independente, a leste.
Mais de um milhão de pessoas emigraram da Venezuela para o Brasil desde 2017. Muitos deles permanecem no país e metade deles já está em outros países. Além disso, através da Guiana, um importante grupo emigra da própria Guiana, de Cuba, do Haiti e de outros países da América Central. Esta realidade da migração envolve também uma realidade de tráfico e contrabando de seres humanos.
Recentemente, cruzaram a fronteira cinco camiões com mercadorias provenientes da Venezuela, com 400 migrantes nas costas, que, vindos da Venezuela, pretendiam chegar à Guiana Francesa e daí atravessar para a Europa.
Há contrabando de outros grupos que trazem migrantes de diversos países para distribuí-los pelo mundo, principalmente Europa e Estados Unidos, embora muitos vão para os países do sul da América.
Esses migrantes muitas vezes acabam trabalhando para eles, que retiram o passaporte e têm que seguir as suas regras, pagando assim a dívida adquirida pela transferência.
No passado o tráfico de pessoas era capturado de forma violenta, hoje é virtual, através da Internet, oferecendo trabalho e uma vida melhor como modelos, jogadores de futebol ou profissões mais simples. Prometendo-lhes bons salários e a possibilidade de ter uma vida digna.
Outra realidade importante em Roraima é a adoção de crianças indígenas. Os menores deveriam passar por um itinerário legal, mas acabam sendo capturados e registrados como se fossem seus próprios filhos.
Existem também outros desafios na Diocese de Roraima, como o tráfico de armas, o garimpo ilegal
Especificamente na questão Yanomami, temos um problema gravíssimo de garimpo ilegal. No início de 2023, de uma população de 30 mil Yanomami, entrou uma população de 20 mil garimpeiros ilegais. O território é imenso, com uma área de 96 mil quilómetros quadrados, existem cerca de 350 comunidades muito frágeis.
O contato com o povo Yanomami é sempre por via aérea, pois eles não possuem estradas. São cidades isoladas. Os rios não são navegáveis na maior parte do ano, apenas nos períodos de chuva que se tornam navegáveis.
O poder económico por trás desta mineração ilegal consegue transportar aviões, e é por isso que no início do ano passado existiam 78 aeroportos clandestinos. Desta forma conseguem trazer barcos para desobstruir o interior do rio.
Quando os garimpeiros ilegais iniciam um processo de recrutamento dos povos indígenas, que passam fome devido à destruição da natureza e do clima que mudou muito, eles não conseguem mais fazer muitas das coisas que faziam no passado, fazendo com que aceitassem ofertas de comida para trabalho ou comida para combustível. Ganhando assim a confiança do povo e é aí que surge também a exploração sexual de mulheres e meninas. Os garimpeiros que estão sem família, sem esposa, usam mulheres indígenas como objeto sexual.
A este drama devemos acrescentar que, devido ao processo de extração do ouro, toda a água dos rios fica contaminada. De forma especial, o mercúrio que entra ilegalmente da China através da Guiana acaba destruindo a potabilidade da água e com ela todos os animais e o modo de vida indígena.
Na verdade, quase chegamos ao ponto em que eles nunca mais poderão voltar a ser os povos indígenas que eram. Com esta avalanche de destruição da natureza, dos rios e da perda de suas culturas tradicionais.
Em relação à mineração ilegal
Eles não têm licença, aliás, terras indígenas não podem ter mineração.
Os ilegais vão para lá principalmente para extrair ouro e, como não podem apresentá-lo como proveniente de terras Yanomami, transportam-no para o estado do Pará, onde entram como mercadoria legal, levando-o posteriormente para a Europa. Hoje sabe-se que quase 90% do ouro que chega à Europa é sobretudo suspeito.
Dom Evaristo, o Papa tinha uma memória do povo Yanomami e do que ele está sofrendo, conte-nos sobre a missão que os missionários da Consolata estão realizando atualmente
Os Yanomami são pessoas de contato recente, são pessoas isoladas. Eles são conhecidos desde os anos cinquenta. Eles não querem contato com pessoas brancas, o que para eles significa destruição, pobreza e morte.
Para explicar um pouco, houve vários momentos de crise humanitária. No início da década de 1990, houve um massacre de povos indígenas causado por garimpeiros ilegais porque estes não permitiam que explorassem suas terras, gerando um grave conflito internacional.
Surgiu a demarcação da terra Yanomami como extensão indígena integral a ser respeitada. A Igreja, através dos missionários da Consolata, tem uma missão de diálogo inter-religioso. Não foram lá para fazer um anúncio explícito do Evangelho. Mas, a partir de um diálogo em busca de Deus, a experiência dos missionários de sua crença religiosa. Trata-se de caminhar juntos com respeito.
São comunidades atendidas por missionários, que além de evangelizarem com sua presença, caminhada e diálogo, ajudam a preservar a vida do povo Yanomami e seu modo de viver genuíno.
A presença indígena em Roraima é enorme, né?
Só no estado de Roraima existem doze etnias, das quais as mais importantes são os Yanomami, os Macuxi e os Wapichama. Na região da serra Raposa do Sol, é onde há mais Wapichama e Macuxi.
Quando foi formada a primeira Prelazia de Rio Branco, antigo nome de Roraima, monges beneditinos, principalmente missionários da Alemanha e da Bélgica, vieram para a região. Ao chegarem em Roraima, ficaram chocados ao ver como os proprietários marcavam os indígenas com os mesmos ferros que usavam para o gado, sinal de que eram propriedade deles, eram seus escravos.
Isto impactou muito os missionários que foram à Boavista para ver as condições de vida sofridas por estes indígenas. Este embate fez com que se insurgissem contra essa mentalidade, impossibilitando a sua vida na Boavista. Assim, tiveram que viver com os indígenas durante doze anos.
Outra coisa muito grave daquela época é que os latifundiários tinham tanto poder que quando os beneditinos iam à cidade fazer compras, os comerciantes eram proibidos de negociar com eles. Ter que viajar mais de 800 quilômetros de barco até Manaus para poder fazer comércio.
Essa relação entre a Igreja e os povos indígenas sempre foi de grande tensão na sociedade roraima. Mais tarde, quando chegaram os missionários da Consolata, a situação era muito diferente. Os indígenas já haviam perdido a identidade, os proprietários os tratavam com desprezo. Perdendo a sua língua, as suas tradições e a sua terra.
Os missionários ajudaram os povos indígenas como Povo de Deus a deixar o Egito. Este movimento veio para alcançar a consciência de que assim como Deus conseguiu devolver o seu Povo à sua terra depois de fugir do Egipto, eles também poderiam regressar à terra que era deles.
Com essa consciência eles buscavam uma nova identidade, de serem indígenas com sua identidade Macuxi, Wapichama, ou qualquer outra identidade. Retome o uso da sua língua, tradições e cultura. Um projeto muito importante foi o de uma vaca para um índio na década de 90. À medida que os proprietários controlavam as terras com os animais, a Igreja ajudou a conseguir até 26 mil cabeças de gado. Com a ajuda do Papa João Paulo II e de muitas pessoas, este precioso objectivo foi alcançado.
Em 2015, o governo brasileiro demarcou a região da Serra Raposa do Sol como território indígena integral. Conseguir a retirada dos latifundiários e a permanência dos indígenas. Em menos de 50 anos, tornou-se um verdadeiro milagre na região que um indígena que havia perdido sua terra conseguisse recuperá-la e com ela toda a sua identidade e dignidade. E tudo graças a essa aliança da Igreja missionária, de muitos europeus que ajudaram a defender os povos indígenas na sua posição.
Muita informação sobre o Sínodo da Amazónia chegou à Europa. O que restou dele e o que esse Sínodo contribui para a Igreja da Europa?
É necessário destacar que o Sínodo está dentro de um processo na Amazônia. Os bispos ali começaram a se reunir para discutir questões sociais e eclesiásticas em 1952, antes de formar a Conferência Episcopal Brasileira. É importante saber isso, porque naquela época já existia uma preocupação com a transformação da Amazônia e sua destruição. Um passo importante foi em 1972 com um encontro histórico dos bispos da Amazônia em Santarén, eles perceberam que a Igreja deveria realizar uma evangelização encarnada. A Igreja também deve encarnar-se na realidade do povo numa evangelização libertadora que envolva os problemas sociais dos povos indígenas que vivem às margens dos rios e dos descendentes dos africanos escravizados da região. Optar pelos mais vulneráveis, descobrindo uma Igreja que torna necessário evangelizar de uma forma diferente. Até agora, a evangelização consistia em um missionário chegar a uma aldeia indígena e ali ensinar os sacramentos desde o batismo, a confissão até o casamento, pelo menos uma vez por ano. Este foi o modelo básico.
A partir de 1972, houve consciência da necessidade de evangelizar em comunidade, e surgiram novas comunidades eclesiásticas de base que floresceram em grande número na Amazônia. Hoje há uma necessidade muito grande de fortalecer estas comunidades com ministérios que possam ajudar a viver a fé da mesma forma encarnada como foi feita. Ministros da Palavra, da Eucaristia, do batismo, da catequese, da saúde. Hoje falamos dos ministérios das mulheres porque são a parte mais importante destas comunidades, pois são elas que as apoiam, porque os homens estão a trabalhar ou longe da comunidade.
Em relação ao Sínodo, é um processo de escuta muito grande, o maior processo de escuta no Brasil desde sempre. Estamos falando da intervenção de 37 mil pessoas de toda a Amazônia para que o Sínodo seja uma reflexão de base, e não de especialistas para iluminar o trabalho da Igreja.
O Sínodo começou assim com toda aquela riqueza de escuta prévia que emergiu. O Papa Francisco conseguiu reunir toda a Amazônia, mostrando uma nova realidade para o mundo, para a sociedade. No passado, falava-se da Amazônia como o pulmão do mundo; hoje sabemos que ela está sendo consumida. Hoje sabemos que a Amazônia é a reguladora do mundo, sabemos que destruir a Amazônia é destruir o clima mundial, acabar com os rios que transformam a terra e as águas do planeta. Um clima que afeta toda a América Latina, mas também outras áreas desérticas distantes do Chile, como a Namíbia, na África. O clima global está interligado de modo que a Amazônia recebe até nuvens do Saara que fertilizam a Amazônia. Tudo está interligado.
Quanto ao que restou do Sínodo, é importante esclarecer que, embora as pessoas procurem grandes mudanças, a verdade é que não é assim. São processos, processos que continuam de maneiras bastante profundas e belas. Um exemplo é a Conferência Eclesial do Amazonas, estamos falando de uma Conferência que não é apenas episcopal, mas abrange também a vida religiosa, sacerdotes, diáconos e leigos. Tudo isso em busca desse novo caminho, inclusive com a inclusão de um rito amazônico que está sendo estudado. Mas mais do que isso, o que ele fez foi buscar uma nova face para a Igreja Amazônica, buscando revalorizar as comunidades indígenas, as culturas locais. Fazer com que as nossas celebrações falem de um Deus que se revela a partir da fé em Jesus Cristo, a partir da vida e da fé daquele povo.
O senhor esteve em Angola como missionário, esteve também no estado do Marajó, no Brasil e seu terceiro destino episcopal em Roraima. Que aprendizado você tem da Igreja e para a Igreja?
Cheguei a Angola ainda muito jovem, frade que trabalhava na zona fluminense e naquela época pertencia ao convento do Rio de Janeiro. Quando me convidaram para ir para Angola era uma época de guerra civil e não sabíamos quando essa guerra iria acabar, pois já durava quase trinta anos. Cheguei nesse contexto. A maioria das pessoas fugiu do interior para a capital e eu trabalhei a 450 quilómetros do interior.
Nossa missão era pequena porque só conseguíamos chegar a 150 quilômetros de distância, cercados pelo exército por causa das minas. Angola é o segundo país mais minado do mundo neste momento. Minas que não foram mapeadas. Graças a Deus, um ano depois, em 2002, chegou o acordo de paz. Mas depois do acordo de paz, os guerrilheiros que estavam na selva chegaram ao interior e ninguém tinha ideia do número, estamos falando de seis mil pessoas de uma vez. Nem a ONU, nem o governo, nem a Igreja, o país não tinha condições de acolher tantas pessoas porque não havia alimentos nem medicamentos para cuidar da sua saúde. Muitos morreram naquela época de fome e doenças. Foi um momento muito trágico.
O próximo passo foi realocar as pessoas para as regiões de origem e iniciar o plantio ali. Foi um processo muito difícil, com muita fome. E só quando começaram a produzir alimentos a situação mudou para melhor. Mas em 2005, Angola começou a ter uma mudança um pouco mais visível, a reconstrução das escolas, como a nossa missão que assumiu este e outros projectos em conjunto com a UNICEF para mais de duas mil crianças.
Este foi um momento importante para abrir um novo caminho para os nossos jovens que estavam fora da escola. Para mim, pessoalmente, todo esse processo significou também experimentar que nada sabia da realidade, ter que reaprender verdadeiramente a cultura, repreender como religioso e como igreja local.
Para mim foi um momento de reconhecer que somos muito pequenos, mas em alguns contextos podemos ser uma ajuda significativa para as pessoas. A Igreja prepara-se assim para o serviço dos mais frágeis e continua a fazê-lo até hoje.
O que você pede hoje à Igreja de Sevilha?
O Padre Carlos Carrasco, sacerdote sevilhano, pároco de Dos Hermanas, que no verão passado esteve em experiência missionária na minha diocese, mostrou-me desde então a sua proximidade e amizade com Sevilha. Nestes dias faremos uma visita para conhecer o Arcebispo e os seus auxiliares, os seminaristas, religiosos e sacerdotes diocesanos. Gerar proximidade, ver, ouvir, fazer o que o próprio Jesus Cristo fez. Saber que quem vê a realidade do mundo é tocado por ela. E certamente projetos importantes podem surgir dessa relação.
Acredito que quando se tem ajuda de uma igreja na Europa com uma situação mais empobrecida na América, na Ásia, na África, é sempre uma troca onde ambos os lados se enriquecem, mostrando assim a missão da Igreja de aproximar as duas realidades. Fazendo com que todos nos tornemos mais missionários estando juntos.
Biografia
Nasceu em 29 de março de 1959 em Gaspar, Diocese de Blumenau, no Estado de Santa Catarina. Após concluir seus estudos de filosofia e teologia no Instituto Teológico Franciscano (ITF) de Petrópolis-RJ, formou-se em exegese bíblica em Jerusalém.
Em 2 de agosto de 1982 fez a profissão religiosa na Ordem Franciscana dos Frades Menores e foi ordenado sacerdote em 19 de maio de 1984. Exerceu os seguintes cargos: vigário paroquial e membro da equipe bíblica urbana em Duque de Caxias-RJ e em Nilópolis-RJ; vice-mestre dos frades estudantes de Duque de Caxias-RJ; assistente conventual no Convento de Santo Antonio no Rio de Janeiro-RJ; missionário e vigário paroquial em Malanje (Angola); definidor provincial; vigário provincial da Província Franciscana Imaculada Conceição do Brasil com sede em São Paulo (2016).
Em 1º de junho de 2016, foi nomeado bispo prelado de Marajó e recebeu a ordenação episcopal no dia 6 de agosto seguinte.
Dentro da Conferência Episcopal Brasileira, é presidente da Comissão Pastoral Especial contra o Tráfico de Pessoas e Membro da Comissão Episcopal Especial para a Amazônia. Além disso, é presidente da Rede Eclesial Pan-Amazônica (REPAM-Brasil).